Mais um capítulo na novela dos diuréticos na DRC

Estudo comentado

Cibele Isaac Saad Rodrigues

Saiu publicado no New England Journal of Medicine, em novembro de 2021, o artigo intitulado Chlorthalidone for Hypertension in Advanced Chronic Kidney Disease, CLICK Trial de autoria de Rajiv Agarwal e colaboradores. ClinicalTrials.gov NCT028412801

Resumo da ópera

Nesse estudo multicêntrico, de titulação forçada de dose, fase 2, duplo cego e controlado por placebo, foram incluídos aleatoriamente 160 pacientes adultos, com doença renal crônica (DRC) estágio 4 (na admissão, RFG estimado médio de 23,2±4,2 ml/min/1,73 m2), sendo a maioria por doença renal do diabetes (76%). Apresentavam ainda hipertensão arterial (HA) mal controlada, conforme confirmado por monitorização ambulatorial da pressão arterial (MAPA) de 24 horas, em uma proporção de 1:1 para receber clortalidona (CTD) em dose inicial de 12,5 mg/dia, com aumentos a cada 4 semanas, se necessário, até a dose máxima de 50 mg/dia (n=81) ou placebo (79). A média de medicamentos anti-hipertensivos em uso era de 3,4±1,4. A randomização foi estratificada de acordo com o uso prévio de diuréticos de alça (n=96, 60%). 

O desfecho primário foi a mudança na PA sistólica (PAS) ambulatorial de 24 horas desde o início até 12 semanas de follow-up. Os desfechos secundários foram a mudança da linha de base para 12 semanas na relação albumina/creatinina urinária, nível de peptídeo natriurético tipo B-N-terminal, renina plasmática e níveis de aldosterona e volume corporal total. A segurança também foi avaliada.

Na randomização, a PAS ambulatorial média de 24 horas foi de 142,6±8,1 mmHg no grupo CTD e 140,1±8,1 mmHg no grupo de placebo e a PAD ambulatorial média de 24 horas foi de 74,6±10,1 mmHg e 72,8±9,3 mmHg, respectivamente. A mudança ajustada na PAS de 24 horas desde o início até 12 semanas foi de −11,0 mmHg (intervalo de confiança de 95% [IC], −13,9 a −8,1) no grupo de CTD e −0,5 mmHg (IC de 95%, – 3,5 a 2,5) no grupo de placebo. A diferença entre os grupos foi de −10,5 mm Hg (IC de 95%, −14,6 a −6,4) (P <0,001). A diminuição percentual na relação albumina/creatinina urinária desde o início até 12 semanas foi maior no grupo CTD do que no grupo placebo em 50 pontos percentuais (IC 95%, 37 a 60). Hipocalemia, aumentos reversíveis no nível de creatinina sérica, hiperglicemia, tontura e hiperuricemia ocorreram com maior frequência no grupo da CTD do que no grupo do placebo, como esperado.

Os autores concluíram que nos pacientes com DRC estágio 4 e HA não controlada, CTD melhorou o controle pressórico com 12 semanas quando comparada ao placebo.

O que sabemos sobre a clortalidona e tiazídicos muito utilizados na prática clínica, mas menos na DRC?

Há muito se discute uso de diuréticos na DRC. A maioria dos nefrologistas e cardiologistas prescrevem diuréticos de alça o RFG cai abaixo de 30 ml/min/1,73m², objetivando ganhar potência natriurética e diurética, já que o status volêmico do renal crônico é geralmente aumentado, determinando hipertensão resistente ou refratária, além das demais complicações associadas ao aumento do débito cardíaco2,3.

Em uma revisão de 13 estudos sobre o uso de diuréticos tiazídicos isoladamente ou em combinação com diuréticos de alça na DRC avançada, nove estudos foram observacionais, enquanto 4 foram ensaios clínicos randomizados (variando entre 7 e 23 pacientes). Estudos observacionais mostraram que as tiazidas foram capazes de reduzir a PA de consultório na posição sentada em 10-15 mmHg na PA sistólica e 5-10 mmHg na PA diastólica, enquanto os ensaios randomizados reduziram a pressão arterial média em cerca de 15 mmHg4,5. Como havia dados preliminares promissores e a falta de estudos randomizados, duplo cegos e controlados, os autores do CLICK Trial decidiram por fazê-lo, na expectativa de confirmar a segurança e a eficácia dos diuréticos tiazídicos na DRC avançada.6

Hidroclorotiazida (HCTZ) ou Clortalidona (CTD)?

Outra pergunta dessa novela é se há diferença entre esses fármacos. A Hidroclorotiazida (HCTZ) e a Clortalidona (CTD) têm uma longa história de utilização, que se iniciou em 1957 com a primeira e, 3 anos após, com a segunda. Ambas são medicamentos anti-hipertensivos considerados dentro do trio de ouro do tratamento da HA, que também inclui um inibidor da enzima conversora da angiotensina ou um antagonista dos receptores AT1 da angiotensina II, além de um bloqueador dos canais lentos de cálcio vasosseletivo7. 

Quanto aos diuréticos, as doses utilizadas a princípio, e durante muito tempo, eram muito acima daquelas necessárias para obtenção dos efeitos anti-hipertensivos e consequente controle pressórico, o que desencadeou efeitos colaterais metabólicos em número muito superior aos encontrados com as doses preconizadas atualmente. Hipocalemia, hiponatremia, hipocloremia, dislipidemia, hipomagnesemia, hipercalcemia, hiperuricemia, são todas consequências associadas ao uso de doses inapropriadas, que acabaram por subdimensionar a importância dessa família de tiazídicos e similares7.

A CTD é uma ftalimidina e pertence ao grupo dos diuréticos semelhantes aos tiazídicos (tiazídicos símiles ou tiazídicos like, nomenclaturas não unânimes na literatura), juntamente com as quinazolinas (metolazona) e indolinas (indapamida).

É fato que a maioria dos médicos, nefrologistas ou não, presume que esses fármacos são intercambiáveis, devido ao mecanismo de ação ser no mesmo local do néfron, ou seja, principalmente inibindo o cotransportador Na+-Cl no túbulo contornado distal. Posteriormente, foi possível compreender que são diferentes, na química molecular, mecanismo de ação, afinidade pelo cotransportador, efeitos pleiotrópicos e nos estudos de eficácia. A CTD aparentemente deveria ser a eleita. No entanto, metanálise recente de uma grande database novamente traz a baila o assunto, mas com vieses de interpretação8. Embora possam causar efeitos metabólicos, especialmente intolerância à glicose e desencadear diabetes mellitus tipo 2, como demonstrado no famoso estudo ALLHAT (p <0,05), análises adicionais do ALLHAT mostraram que, para CTD, seu maior efeito hipotensivo foi mais benéfico do que seu efeito deletério no metabolismo de carboidratos: os diabéticos não apresentavam risco aumentado de desenvolver DRC em estágio 5 ou RFG diminuído na linha de base em 50% ou mais se tratado com CTD9. Estudo de grande porte, head to head entre HCTZ e CTD é esperado e será conduzido pelo Veteran Affairs Office of Research and Development (DC, EUA). Até lá, teremos que esperar, porque as evidências disponíveis são muito pobres até o momento.

Mas, de fato, o que devemos levar como mensagem desse estudo?

  1. Estudos com tamanho de amostra reduzido e observacionais não podem ser parâmetros para mudança de conduta e a ciência deve ser baseada em evidências, ou seja, em estudos com delineamento apropriado. Vale ressaltar que não havia patrocínio da Indústria e era de interesse dos investigadores (National Heart, Lung, and Blood Institute and the Indiana Institute of Medical Research).
  2. Foram necessários 2849 pacientes para se obter 403 consentimentos e apenas 160 randomizados, sendo um total de 140 (88%) que completaram as 12 semanas de follow-up, o que pode ter sido um período de seguimento muito curto, especialmente se pensarmos em desfechos duros. Fica a pergunta: como seria essa utilização a longo prazo, além das 12 semanas? Outra pergunta que vale a pena ser respondida: o achado seria o mesmo em DRC não diabética, já que 76% tinham essa doença de base?
  3. O grupo clortalidona teve benefício pressórico com queda consistente de -11 mmHg na PAS, diminuição da relação albuminúria/creatininúria e diminuição do peptídeo natriurético tipo B-N-terminal, mas determinou mais efeitos colaterais (91% no grupo CTD vs. 86% no grupo placebo), principalmente de natureza metabólica nos que utilizaram o diurético. O mecanismo da queda pressórica é consistente com a diminuição de volume plasmático e com as alterações de renina e aldosterona, que aumentaram, como seria esperado, principalmente se considerarmos que o mecanismo de ação inicial desses medicamentos é bifásico, sendo inicialmente por diminuição de débito cardíaco e posteriormente por redução da resistência periférica (efeito vasodilatador direto).
  4. As medidas de consultório observadas não são as mesmas que medimos em nosso País, realizadas em condições extremamente controladas, sem a presença de profissional médico ou de saúde, com aparelho automatizado que faz 3 medidas e sua média. A disponibilidade de MAPA também é limitada, mas é algo que devemos ter no horizonte como ferramenta de grande utilidade, especialmente para avaliação da PA noturna e para acompanhamento de pacientes hipertensos renais crônicos.
  5. Uma dieta hipossódica foi prescrita a todos os pacientes e pode eventualmente explicar até menor eficácia do que a esperada para CTD vs. placebo.
  6. Na minha opinião pessoal, se for para escolher entre HCTZ e CTD para uso na DRC faz mais sentido escolher a segunda, como demonstrado nesse estudo, considerando estrutura química, propriedades farmacológicas e efeitos pleiotrópicos: a CTD diminui a agregação plaquetária, aumenta a síntese de óxido nítrico, reduz a hipertrofia ventricular esquerda e fatores de crescimento. A associação de diuréticos de alça com um tiazídico ou CTD pode ser de grande utilidade, especialmente em estados edematosos.
  7. Nos grupos randomizados para clortalidona ou controle, 60% dos pacientes estavam em uso do diurético de alça mais utilizado nos EUA, a torsemida. Em várias diretrizes, incluindo as de Hipertensão Arterial 20207, a recomendação é pela substituição de tiazídicos e seus similares por um diurético de alça (furosemida ou bumetamida), quando o RFG estimado cai abaixo de 30 ml/min/1,73m2. Em condições clínicas de hipervolemia, como a insuficiência cardíaca congestiva, DRC, Síndrome Nefrótica e insuficiência hepática, a associação de dois ou mais diuréticos, sendo o terceiro um poupador de potássio, se constitui em estratégia eficaz em muitos casos para se obter maior efeito natriurético e diurético. Nesse estudo seria muito bem-vinda a análise do comportamento da pressão arterial comparando os indivíduos que tomaram a associação (60%) vs. aqueles que tomaram apenas clortalidona (40%). É curioso esse aspecto não ter sido apontado pelos revisores do NEJM.
  8. Vamos terminar com um chavão: mais estudos são necessários, head to head, bem delineados, para responder se utilizamos só diuréticos de alça, ou/e tiazídicos ou seus símiles e, entre os dois últimos, qual o melhor. Fato novo, a conferir, são os novos players nessa trama, os antagonistas dos receptores mineralocorticoides para DRC, particularmente secundária a doença renal do diabetes. São diuréticos de fraca potência, mas com muitos efeitos pleiotrópicos10.
  9. Finalizando, o CLICK Trial merece atenção e é crível para o uso de CTD para controle pressórico na DRC de causa diabética por 12 semanas de acompanhamento, mas está longe de ser o capítulo final da novela dos diuréticos na DRC.

Referências

  1. Agarwal R, Sinha AD, Cramer AE, Balmes-Fenwick M, Dickinson JH, Ouyang F, Tu W. Chlorthalidone for Hypertension in Advanced Chronic Kidney Disease. N Engl J Med. 2021 Nov 5. doi: 10.1056/NEJMoa2110730. Epub ahead of print.
  2. Muxfeldt, ES, Chedier B, Rodrigues, CIS. Resistant and refractory hypertension: two sides of the same disease? Braz J Nephrol. [on line]. 2019, 41(2):266-274.
  3. Yugar-Toledo JC, Moreno Júnior H, Gus M, Rosito GBA, Scala LCN, Muxfeldt ES, et al. Posicionamento Brasileiro sobre Hipertensão Arterial Resistente – 2020. Arq Bras Cardiol. 2020; 114(3):576-596.
  4. Sinha AD, Agarwal R. Thiazide diuretics in chronic kidney disease. Curr Hypertens Rep 2015;17:13-13.
  5. Agarwal R, Sinha AD, Pappas MK, Ammous F. Chlorthalidone for poorly controlled hypertension in chronic kidney disease: an interventional pilot study. Am J Nephrol. 2014;39(2):171-82. doi: 10.1159/000358603. Epub 2014 Feb 11. PMID: 24526255.
  6. Agarwal R, Cramer AE, Balmes-Fenwick M, Sinha AD, Ouyang F, Tu W. Design and Baseline Characteristics of the Chlorthalidone in Chronic Kidney Disease (CLICK) Trial. Am J Nephrol. 2020;51(7):542-552. doi: 10.1159/000508700. Epub 2020 Jul 14. 
  7. Barroso WKS, Rodrigues CIS, Bortolotto LA, Mota-Gomes MA, Brandão AA, Feitosa ADM, et al. Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial – 2020. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(3):516-658
  8. Dineva S, Uzunova K, Pavlova V, Filipova E, Kalinov K, Vekov T. Network meta-analysis of efficacy and safety of chlorthalidone and hydrochlorothiazide in hypertensive patients. Blood Press Monit. 2021 Apr 1;26(2):160-168. doi: 10.1097/MBP.0000000000000486. 
  9. ALLHAT Officers and Coordinators for the ALLHAT Collaborative Research Group. The Antihypertensive and Lipid-Lowering Treatment to Prevent Heart Attack Trial. Major outcomes in high-risk hypertensive patients randomized to angiotensin-converting enzyme inhibitor or calcium channel blocker vs diuretic: The Antihypertensive and Lipid-Lowering Treatment to Prevent Heart Attack Trial (ALLHAT). JAMA. 2002 Dec 18;288(23):2981-97. doi: 10.1001/jama.288.23.2981. Erratum in: JAMA 2003 Jan 8;289(2):178. Erratum in: JAMA. 2004 May 12;291(18):2196.
  10. Kawanami D, Takashi Y, Muta Y, Oda N, Nagata D, et al. Mineralocortioid Receptor Antagonists in Diabetic Kidney Disease. Front. Pharmacol., 28 October 2021. Available at: https://doi.org/10.3389/fphar.2021.754239. Accessed in [17 November 2021].